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A escolha do artista para a exposição interfaces e fronteiras: arte & ciência
Angela Ancora da Luz
Desde a escuridão dos tempos, quando o homem começou a deixar o registro de sua passagem pelo planeta, a arte e a ciência documentaram a identidade de um autor que possuía características especiais. Criava, inventava, pensava o seu objeto, mas não apenas com seu conhecimento, havia nele outra preocupação, a revelação de sua sensibilidade. Por esta razão, ao longo de toda a história, arte e ciência se interpenetraram.
Quando nos voltamos para observar as mais remotas criações tridimensionais da pré-história, nos deparamos com os menires, gigantescas pedras fincadas verticalmente no solo, cuja forma fálica aludia, segundo alguns, aos cultos de fertilidade. Pelas sombras por eles projetadas podia-se medir o tempo. Assim, a forma criada, a partir da sensibilidade artística de um homem, vinha carregada de atributos inerentes aos desejos mais subjacentes da alma humana, à sua interioridade, mas também, ao seu conhecimento, pois pelo peso considerável destes megalitos acredita-se que o homem já deveria conhecer a alavanca. Esta ilustração inicial tem como proposta expor o que, desde sempre se apresenta: arte e ciência.
O nome do escultor Maurício Salgueiro para marcar a evidência da tênue fronteira da arte e ciência, na exposição comemorativa do aniversário de 50 anos da COPPE, emergiu em mim, logo que fui consultada e me envolvi com o projeto.
Desde cedo Maurício se interessou pelas questões que se constroem na interface da ciência e da arte. Ele começou a fazer engenharia por um princípio de família. A visão da profissão liberal que oferecia condições de valorização social e de estabilidade econômica era importante para a orientação que os pais procuravam transmitir a seus filhos, nos anos de 1940. O Direito e a Medicina, outras propostas avaliadas, não seduziram o jovem que já se interessava por motores, pela mecânica e pela construção. Apesar de gostar da engenharia, ele não permaneceria no curso. Logo, a força propulsora que um artista traz em si, capaz de liberar sua interioridade e transformar a vontade em energia criadora, mobilizaria sua escolha, promoveria sua audácia e revelaria sua verdadeira identidade: escultor.
Na ocasião em que inicia o curso de Escultura na Escola Nacional de Belas Artes, o ateliê de formação na categoria tinha menos procura que os de Pintura ou Gravura. Se as oportunidades de um artista já eram escassas, as de um escultor eram ainda mais raras. A necessidade de espaço para criar, a aquisição de material para a obra, a dificuldade de transporte do objeto, exigiam despesas com as quais o jovem escultor não conseguia arcar. Maurício passa por cima de todos os obstáculos e segue na sua própria direção, configurando-se hoje, num dos mais significativos escultores contemporâneos, conjugando os princípios conceituais da arte com o conhecimento da mecânica, da ótica, da resistência dos materiais e, como não poderia deixar de ser, de uma poética que surge na experiência do vivido, no sentimento que une a emoção e a razão, a forma e o movimento, a vida que se exterioriza e o recolhimento que se promove quando se vai ao encontro da própria consciência e de suas experiências inaugurais.
Mas Maurício não se fechou no ateliê. Possui dois doutoramentos, viajou por mais de trinta países, esteve com
dezenas dos mais notáveis artistas de vanguarda, conversando, discutindo, expondo seu pensamento sobre o objeto comum de sua arte. Fez curso de História da Arte no Louvre, de metais em Londres, estagiou com Szabo um grande conhecedor de metais, na “Académie du Feu” em Paris, e fez também vida acadêmica na Escola de Belas Artes da UFRJ, onde se tornou Professor Titular por concurso. Foi diversas vezes premiado nos salões oficiais, nas bienais de São Paulo, tendo sido convidado por Pierre Restany para participar da Sala Arte e Tecnologia na 10ª Bienal Internacional de São Paulo em 1969. Sua biografia confirma a expressão deste escultor brasileiro.
O nome de Maurício Salgueiro era definitivo na sugestão que me solicitaram os organizadores do evento com o qual a COPPE marcará seu aniversário de 50 anos.
Entre as muitas obras lembradas, a Taça das Bolinhas se destacou para a devida escolha. Ela foi pensada nas discussões da equipe com o próprio escultor. Sua significação é emblemática, pois em 1975, em concurso promovido pela Caixa Econômica entre 10 escultores exponenciais do país, Maurício Salgueiro saiu vencedor para criar o Troféu Copa Brasil, conhecido como Taça das Bolinhas.
A obra mexe com o referencial simbólico da alma brasileira. O futebol. Apesar da forma de taça, que deveria marcar o princípio de identificação do objeto, ela é construída por um princípio de retícula espacial, em que as 156 pequenas esferas se distribuem em 13 níveis, alinhadas por hastes que sustentam a trama cuja estrutura desenha visualmente uma taça. Maurício utilizou a prata rodinada em 155 delas, sendo que a central e superior é de ouro. Os níveis sugerem o próprio campeonato que vai selecionando clube a clube até chegar ao topo, ao único, ao vencedor do campeonato, à esfera de ouro. Com cerca de 20 kg e com 60 cm de altura a taça está hoje em litígio, pois é requerida por dois clubes, por força de interpretação do regulamento que indicaria o único vencedor.
Para a exposição, e respeitando o direito autoral, ela será exposta em outra escala, numa dimensão maior. Ela concilia em si a ciência e a arte, desfazendo fronteiras e estabelecendo, no conhecimento exato, a poética do sensível. Ela possui o rigor matemático das construções projetuais, a força lírica da expressão humana, desde a redondeza do ventre materno que espera um novo ser ou a redondeza do planeta que viaja no espaço e no tempo. A escultura proposta, “Taça das Bolinhas”, sinaliza os átomos e sugere a força das formas esféricas. Mas as pequenas esferas também remetem ao primeiro estado de desenvolvimento do embrião humano, a mórula, princípio da vida dos animais, força que impulsiona a continuidade das espécies. Ao mesmo tempo as esferas materializam as bolas de futebol, objeto central que atrai os olhares em campo, os corações em rede pelo Brasil, a paixão do menino que começa a andar e do ancião que se junta a outros nas esquinas e bares das cidades, para assistir seu time jogando.
A escolha de Maurício Salgueiro põe em evidência um dos maiores nomes da escultura contemporânea brasileira, que também se dedicou ao ensino, a formar outros escultores, a transmitir arte e ciência e que pertence aos quadros de nossa universidade.