- Textos
Participação ou Rejeição?
Clarival do Prado Valladares. Jornal do Comércio, 13 dezembro 1970
Outro dia contei a história de Tio Juca da Bahia que soube inventar um autêntico meio de participação, entre o observador e o objeto, pondo no visor de seu próprio esquife um espelho, ao invés de um simples vidro transparente.
Leitor amigo me procurou e pediu consideração para o que ocorreu numa recente seleção de obras da Pré-Bienal de São Paulo, destinadas a figurarem na representação brasileira da vindoura XI Bienal, isto é, a Internacional. Não se trata – graças a Deus! – de caso de morte, mas se filia ao elenco dos casos de espelhos.
O escultor Maurício Salgueiro, de cujo mérito ninguém duvida, nem como profissional de formação e nem tampouco como experimentalista, das propostas do vanguardismo, achou de enviar para a dita Pré-Bienal uma construção, dessas que não se sujeitam à qualquer das categorias convencionais.
Não era pintura, nem escultura, nem teatro e nem cinema, mas poderia ser, sob o critério crítico, tudo isso por inquestionável correlação estética implicada à denominada arte de participação.
Era uma caixa de dois metros e meio de altura, por um de fundura, guardando no meio um enorme espelho feito de uma simples folha de aço inoxidável.
Era agradável ao distinto observador espelhar-se diante daquela superfície, perfeita e bem polida. Ao lado, um botão de campainha incitava o curioso a um leve toque e de repente a enorme e flexível folha de aço – (o espelho) – dobrava-se com violência, para frente e para trás, produzindo aquele som agudo, demorado, de uma lâmina cravada no infinito. Acompanhando o grito metálico, pior do que sirena e assovio de jato, a imagem do observador obedecia às regras da concavidade e da convexidade.
Quem era gordo ficava magro. Agradecia. No instante seguinte engordava mais ainda, e então... Quem era feio tornava-se por um instante razoável, mas no instante imediato a realidade lhe devolvia tudo em dobro.
Conheço pessoas que evitam se mirar em para-lama de automóvel só para não se ver como a muitos parecem, quanto mais submetidas à experiência de Maurício Salgueiro, talvez mais próxima da dialética do realismo - excessivo que do realismo - mágico.
Como invenção e construção, pode-se afirmar tranquilamente que teria sido a mais adequada representação brasileira, no vindouro certame internacional
da XI Bienal de São Paulo. Haveria de ser, pelo menos, uma maneira de devolvermos aos forasteiros uma máquina de fazer imagens.
Infelizmente o júri fez um julgamento subjetivo, isto é, de acordo com a sua própria reflexão, e o resultado foi a recusa daquela caixa de realismo – excessivo.A Comissão que rejeitou o Espelho – mágico de Salgueiro estava constituída de grandes nomes da crítica de arte internacional para o especial compromisso de selecionar valores nacionais.
Esta circunstância complica as pretensões do artista, porém quando se analisa o biotipo de cada um dos meritíssimos juízes, logo se percebe que Salgueiro não poderia obter, jamais, aprovação de sua máquina.
Imagine-se o argentino Romero Brest, de quase dois metros e não sei quantas arrobas, truculento e calvo, por um simples golpe de espelho transfigurado em longilíneo, astênico, leptossômico, esquizotímico – tudo como quisera ser – e quase no mesmo instante, sob a denúncia do grito metálico, de volta à realidade.
Agora se ponha em mente a figura de Hugo Auler, crítico de arte de Brasília, igualmente calvo porém magricela transformado por posição de Salgueiro no biotipo e no colesterol do argentino Brest. Em terceiro lugar vem o paulista Geraldo Ferraz, exemplo biotipológico do brevilíneo picnico, tão gordo que de tempos em tempos lembra o modelo esferoide do cubista Jacques Villon (1875-1963), descoberto em um dono de restaurante de Puteaux. Subitamente, vê-se corrigido pela convexidade da caixa – mágica, quase na simpatia do saudoso Tyrone Power; mas o perverso aço logo se faz côncavo e o ilustre crítico ciclotímico não poderá jamais perdoar o espelho.
Por fim, aproxima-se do fatídico aparelho o muito estimado Marc Bercowitz. Ele não é nem gordo, nem magro, é do tipo atlético, tabela 2, na classificação de Kretschmer. Seu perigo é menor. Resiste bem ao côncavo e ao convexo. A transfiguração escolhe o seu rosto, agora emoldurado de cabeleira e barba doiradas. No momento em que o espelho se achatava, Marc desaparecia e se via um canteiro de margaridas. Quando a folha de aço revertia, aparecia um majestoso girassol. Mas, do ponto de vista da crítica de arte, girassol por girassol todos preferem os de Van Gogh. Por fim o espelho – mágico de Salgueiro acabou sendo recusado como arte de participação. Contudo conseguiu abrir um novo capítulo, o da arte de rejeição.
Obs.: A coordenação da XI Bienal Internacional de São Paulo convidou o artista plástico Maurício Salgueiro para participar desta XI Bienal na Sala Especial "Novas Proposições" com apresentação do crítico Harry Laus