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Exposição de Mauricio Salgueiro
Clarival do Prado Valladares – Galeria Guignard, Belo Horizonte, Outubro de 1964
Poucas vezes é dado a um artista a possibilidade de refletir o melhor de sua obra numa exposição de poucas peças. No presente exemplo a Exposição de Maurício Salgueiro, na Universidade de Belo Horizonte, acredito ver, de fato,
concentrado, nessas nove peças, o mais grave de uma obra, especialmente porque corresponde ao conteúdo vigoroso de uma mensagem.
Seus trabalhos acham-se unidos por uma reflexão estética e ética bem timbrada sobre cada, tanto em relação à problemática orientadora quanto a temática assumida. Formam, nessa exposição de Belo Horizonte, dois grupos. As duas corujas e a figura do pássaro refletem o gosto plasticista do artista, a preocupação de solucionar bem o problema de uma construção plástica mediante materiais atuais, isto é, materiais verdadeiros e lógicos de uma data, e de uma realidade.
Nesse atributo Maurício Salgueiro filia-se aos numerosos escultores coletâneos que levantam da sucata de uma era tecnicista, mecanicista e dramaticamente materialista, o assim chamado lixo da civilização - (restos e partes
de máquinas, ferramentas desgastadas, fragmentos de instrumentos etc.) com o que reconstroem, em verdade, o humanismo e a sua espiritualidade.
Não há por conseguinte, nada de novo na "equipoised sculpture", mas na mensagem que cabe ao artista conferir, traduzindo o sentimento coletivo de julgamento e de emocionalidade. O segundo grupo, representado pelas peças que se denominam Idiota I, Bate-papo, Vacuometro, Guerreiro ou Rebelado, Três Figuras e Bala de Canhão e Ferro de Engomar formam, nitidamente, um conjunto unificado por uma temática de teor élico muito acima do primeiro interesse apenas plasticista.
Por tal motivo recebe uma inevitável carga literária, que torna a composição mais difícil como solução espacial. Dessa maneira passa a corresponder no mais difícil de construção escultórica cuja validade jamais se desvia de sua rígida contingência de arte espacial.
O aplauso e o entusiasmo que me prende à obra de Maurício Salgueiro vem do verificar a vitalidade de sua intenção ética magistralmente equilibrada à problemática da construção plástica, noutras palavras, à qualidade artística destituída da implicação subjetiva.
Repare-se, nesses trabalhos mencionados, como as partes compositivas continuam identificáveis em suas respectivas definições, como essas unidades se levantam de uma realidade empírica para atingir uma realidade estética soberana.
Outros escultores usam de sucata a serviço de uma construção abstracionista, lírica, anulando a veracidade e o teor humanístico dos objetos, para entregá-los à porta mais modesta, senão anódina, da estética, que é a função decorativa.
Estes trabalhos de Salgueiro destinam-se a um outro endereço, o da historicidade. Suas figuras humanas, erigidas com os restos de pás, picaretas, enxadas, parafusos, porcas, roscas, instrumentos, etc., procuram, na tradução da
escultura, uma intenção satírica veemente, verdadeiro e arrojado testemunho da criatura oprimida e quase anulada pelo caráter de uma civilização materializada e super-instrumentalizada.
Não se tratando, pois, de um processo narrativo, não se comprometendo a um texto discursivo, essas figuras exercem sobre o observador um poderoso e iniludível impacto, uma visão direta e imediata do conflito entre materialização e espiritualização, facultando, entretanto, a esse mesmo observador, suceder a primeira e brutal visão, por uma série de percepções inerentes da qualidade plástica, do procedimento artesanal e dos demais valores como escultura.
Parece-me correta a impressão de alguém que viu nas figuras de Salgueiro um sentimento de compaixão pela criatura humana, acima do vínculo ironizante. Em verdade ele não satiriza o ser humano, mas a sua própria história desumana. Ele não fere o corpo humano, porém revela as entranhas feridas, pelos erros de sua própria conduta. Nada existe de romântico neste procedimento uma vez que não rememora valor afetivo algum, sob interesse consagratório.
A mensagem é julgamento e protesto, indagação e piedade e até mesmo um certo grau de sadismo sem jamais situar-se fora de um depoimento. Depoimento de um mundo e de uma experiência atual, que por sua vez determina o critério mais sútil do reconhecimento de uma obra de arte: o seu natural sentimento de contemporaneidade.
Por fim, vale mencionar, também, a posição desse artista na velha polêmica dos escultores relativa ao conceito dos materiais nobres, necessários ou indispensáveis, à construção do que se define o pretende como obra de arte. Sob o ponto de vista convencional, dar-se-ia ao mármore, ao granito e ao bronze a hierarquia da nobreza escultórica.
Todavia, sob a interpretação da história, matéria nobre passa a ser mais representativa do apogeu da respectiva civilização, em relação ao meio a à data. Se o granito foi a matéria nobre do Egito, o mármore da Grécia, a argila da Mesopotâmia, o bronze do Etruria, e assim por diante, não há dúvida que o aço encontrado nas ferramentas e máquinas é a matéria nobre de uma civilização atual, como apogeu de seus atributos.
Mas, pela razão mesma dessa civilização não tratar a criatura sob o interesse de fazê-la o seu meio e fim sagrados, cabe ao artista tirar do lixo das máquinas os simples elementos que se notabilizam, mediante a espiritualidade que a criação artística sabe imprimir-lhes. Nessas direções e dimensões vejo e situo a obra de Mauricio Salgueiro.
Clarival do Prado Valladares